sábado, dezembro 31, 2011

Cruelty

Chovia calmo sob o limbo avermelhado. Entardecia. Tomou o banho mais frio de sua vida enquanto falava com ele a língua dos amantes, a que a intimidade lhes trouxera com os anos, junto das marcas de expressão e os sinais mudos de reciprocidade. Eram pobres para os luxos maiores da vida e sabia que a idade lhes fazia mal. Viviam a si próprios o paraíso da pele, mapeando curvas e vales de colunas e quadris. Não tinham tempo para o mundo, pois ser os consumia, obrigava-os a fugir da responsabilidade dos sonhos paternos, do subalterno. Sofriam o custo de decidirem seus destinos mais de duas, três vezes ao dia. Foram tudo e de todos, juntos. Ela sentia falta do peso exato de seu corpo, da barba por fazer e de quando ele a empurrava contra a parede, tanto quanto os seus jantares tabelados e o cigarro na janela do corredor quando estavam brigados. O sorriso. A falta era igual. Sentia saudades de fazer de conta que sabia das coisas, de diagnosticar e fazer curativos no dedinho do pé dele, e de como ele realmente acreditava. A casinha de brinquedo onde ele disse tudo antes que o sol nascesse, o colchão velho, as roupas gastas, as cicatrizes. Dinheiro fácil que eles beberam. Foram suas mães, seus amantes, inimigos e traidores. E ela sofria de desgosto quando lembrava de escolher o que relevar, pois estar viva era o que lhe bastava.

Enquanto a chuva e o ombro dele abafavam seus soluços, ela decidiu. Entregou-se. E assim definharam, mergulhados um no outro. Mortos de cansaço e de felicidade roubada daqueles que não a puderam acolher.
Longe daquele dia o céu já amanhece. Hoje ela sobrevive.

3 comentários:

Anônimo disse...

é como se eu tivesse escrito... você me conhece de certa forma.

Gabriela Silva disse...

Que lindo isso, tão lindo...apertou minha garganta numa memória ficcional.

Martini disse...

^^...
tu é uma figuraça daquelas que vem com efeito holográfico né (vendo teus blogs) haha